quarta-feira, 7 de setembro de 2016

JOSÉ, TEREZA, ZÉLIA... E SUA COMUNIDADE... UM TERRITÓRIO CIGANO

www.observatoriogeogoias.com.br 2 -
(Rádio Difusora - Goiânia-GO) em julho de 2000.

Transcrição feita por Ademir Divino Vaz.
Publicado originalmente em: Revista Trilhos – Revista da Faculdade do Sudeste Goiano.
Pires do Rio. V-3, nº 3 (2005), p. 95-109.
JOSÉ, TEREZA, ZÉLIA... E SUA COMUNIDADE...
UM TERRITÓRIO CIGANO
Ademir Divino Vaz1 - ad.vaz@bol.com.br

RESUMO: 

O problema que sempre existiu ao estudar os ciganos foi o risco do exotismo e da comparação depreciativa. Se, por um lado, as pessoas se encantam e surpreendem-se com o "estranho" modo de vida dos ciganos, por outro, não relutam em considerá-los inferiores, atrasados. Dessa forma, costuma-se definir os ciganos como sendo o povo que não tem residência fixa, que não tem uma pátria, que não tem emprego...
Contudo, não se pode explicar os ciganos pelo que lhes falta, tendo como ponto de referência a nossa sociedade, pois assim, deixa-se de ter uma melhor compreensão da sua realidade. Pensando na essência da realidade cigana, este artigo traz inicialmente uma breve caracterização histórica dos ciganos, apresentando a trajetória de poucos direitos e na seqüência apresenta as relações sociais entre ciganos e não-ciganos na cidade de Ipameri, sudeste de Goiás.

Uma origem complexa e uma trajetória de poucos direitos 

 O amor à liberdade, à natureza, e a sabedoria de viver representada por um conjunto de tradições e crenças, fazem parte de uma cultura fascinante e polêmica de um povo amante da música, das cores alegres e da dança.
 Tais características são inerentes à cultura cigana. Para esse povo o importante é o momento presente. O passado é experiência e lembranças, e o futuro uma expectativa aventureira de conseguir sobreviver à margem de uma sociedade, que por muito tempo não conhecia a origem desse povo. São traços predominantes de uma doutrina hedonista, que considera o prazer como fim último e universal da conduta humana.
 Foi difícil distinguir entre a lenda e a história com respeito à origem dos ciganos. Para Peter Godwin (2001) somente no século XIX, através de pesquisas lingüísticas e antropológicas, graças a indícios nos vários dialetos de seu idioma - o romani - chega-se a conclusão de que os ciganos, provêm da região de Gurajati, norte da Índia e que foram para o Oriente Médio há cerca de mil anos.
 As informações mostram que, os ciganos migraram da península indiana para Europa há quase mil anos. Espalharam-se pelo continente europeu deixando de ser um povo homogêneo. Nos séculos XVI e XVII foram expulsos de vários países e passaram a ser associados aos criminosos, aos propagadores de epidemias e aos ladrões. Esta racionalização negativa era aceita pela maioria, para justificar as medidas de expulsão ou de distanciamento.
 A história dos ciganos foi marcada também por perseguições e preconceitos durante a sua dispersão pelo mundo a partir do século XI. Segundo Martinez (1989), na Moldávia e na Valáquia, atualmente Romênia, os ciganos foram escravizados durante 300 anos; na Albânia e na Grécia pagavam impostos mais altos. Também na Hungria conheceram a escravatura. E os ingleses expulsavam, sob pena de morte, aqueles que se recusavam a fixar residência, ou seja, os ciganos. Na Alemanha, crianças ciganas eram tiradas dos pais com a desculpa de que "iriam estudar", enquanto a Polônia, a Dinamarca e a Áustria puniam com severidade quem os acolhesse. Pior ainda acontecia nos países Baixos, onde inúmeros ciganos foram condenados à forca e seus filhos obrigados a assistir à execução para aprender a "lição de moral".
 Schepis (1997) reforça os exemplos de perseguições, preconceitos e discriminações sofridas pelos ciganos. Para ela, na Sérvia e na Romênia eles foram mantidos em estado de escravidão por um certo tempo e a caça ao cigano aconteceu com muita crueldade e com bárbaros tratamentos.
 A hostilidade ao cigano vem devido aos seus hábitos de vida muito diferentes daqueles que tinham as populações sedentárias. Eles eram, também, considerados inimigos da Igreja, a qual condenava as práticas ligadas ao sobrenatural, como a cartomancia e a leitura das mãos que os ciganos costumavam exercer.
 A falta de uma ligação histórica precisa a uma pátria definida ou a uma origem segura não permitia o reconhecimento como grupo étnico bem individualizado. A oposição aos ciganos se delineou também nas corporações, que tendiam a excluir os concorrentes no artesanato, sobretudo no âmbito do trabalho com metais. O clima de suspeitas e preconceitos é mais uma vez percebido por Martinez (1989) na criação de lenda e provérbios tendendo a pôr os ciganos sob mau conceito, a ponto de recorrer-se à Bíblia para considerá-los descendentes de Cã, e , portanto, malditos (Gênesis, 9:25). Difundiu-se também a lenda de que eles teriam fabricado os pregos que serviram para crucificar Cristo (ou, segundo outra versão, que eles teriam roubado o quarto prego, tornando assim mais dolorosa a crucificação do Senhor).
Comerciantes natos, artesãos de cobre, metais e ourives, artistas, músicos e as mulheres leitoras da sorte, nunca passaram despercebidas na história da humanidade. Sob o nazismo, os ciganos tiveram um tratamento similar ao dos judeus: muitos deles foram enviados aos campos de concentração, onde foram submetidos à experiências de esterilização, usados como cobaias humanas. Calcula-se que meio milhão de ciganos tenham sido eliminados durante o regime nazista.
 É difícil traçar os rumos tomados pelos ciganos no Brasil. Sabe-se que os primeiros que vieram para o Brasil, estabeleceram-se em Pernambuco, na Bahia e Minas Gerais, "o rumo posteriormente tomado pelos deportados, quantos internaram-se nas florestas ou permaneceram nos centros colonizados, é uma questão complexa e de resolução dificílima" (Moraes Filho, 1981:27). No Brasil nunca existiu uma política pró-cigano, nem leis que tratam especificamente das minorias ciganas. No entanto, na constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 existem alguns artigos que por extensão podem também ser aplicados aos ciganos. No artigo 3° evidencia-se como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem a todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No artigo 5° está escrito que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, inviolabilidade de direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Desta maneira, observa-se na Constituição Brasileira o direito a não-discriminação, o que na maioria das vezes só fica na teoria.
Ainda no artigo 5º percebe-se o direito à livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. Esse, provavelmente, é o direito mais importante para a maioria dos ciganos, o direito à livre locomoção. Nota-se, portanto, na Constituição brasileira a garantia de alguns direitos que cabem também aos ciganos. Porém, na prática, conforme já foi mencionado, muitos destes direitos são constantemente ignorados e violentados.
Mio Vacite, representante da União cigana do Brasil, fala sobre a origem do preconceito que cerca o povo cigano: Não se pode dizer que a origem é esta ou aquela, uma única coisa. São vários fatores: primeiro é o nomadismo, o modo de vida ser diferente, seria a barganha, o comércio. Essa discriminação gerou-se porque nós infelizmente fomos rotulados pela sociedade branca que não admitia que nós somos um povo livre e tivesse nossa própria cultura. Isso eu falo nos termos da época do Brasil Colonial e Imperial. (...) Dizem que os ciganos roubavam crianças. Existem controvérsias sobre isso. (...) Naquela época de 1500, 1600, 1700, onde as moças da sociedade se perdiam, então havia aquele problema. Então era mandada para Europa para estudarem piano num convento, esperando que a criança nascesse, e as freiras davam essas crianças aos nômades que passavam. Daí via-se em alguns acampamentos, ciganas loiras de olhos azuis. (...) Daí criaram as controvérsias, esses mal entendidos.2
Pelo depoimento percebe-se que o preconceito aos ciganos no Brasil advém do diferente modo de vida deles e que a herança cultural desenvolvida através de inúmeras gerações pelos brancos condiciona esses a reagirem depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos "padrões" aceitos pela maioria da sociedade. Por isso a discriminação ao comportamento de pessoas "diferentes".
 Segundo Santos (2002), os grupos ciganos estão historicamente muito divididos no Brasil por terem trajetórias diferenciadas, formas e estilos de vida diversos. Provavelmente os primeiros ciganos Kalons chegaram ao Brasil no século XVI deportados da península ibérica. Chegados ao Brasil, os Kalons logo se espalharam pelas diversas capitanias. No século XVIII já se faziam numerosos, tanto quanto a intolerância dos governantes, que em várias capitanias lançavam mão de provisões e leis com o intuito de expulsá-los de suas áreas de controle.
O território cigano em estudo, encontra-se localizado na zona urbana do município de Ipameri, região sudeste do Estado de Goiás. Instalado nessa cidade, o território cigano é formado por uma comunidade, supostamente do grupo Kalon, que há décadas transitou por Ipameri. A área atualmente ocupada foi doada aos ciganos no final da década de 1990.

Ciganos Parentes, Moradores Conhecidos e Moradores Estranhos 

 Em Ipameri, a relação entre ciganos e demais moradores aparece na fala de ambos os lados, principalmente, quando abordam o tempo dos mais idosos em comparação com a situação atual. Os ciganos em suas narrativas consideram que no território só existem parentes, incluindo os não ciganos que casaram com os ciganos. Desde os anos 60, do século passado, famílias e indivíduos ipamerinos chamados pelos ciganos de moradores passaram a se relacionar com a comunidade cigana. Esse segmento, também referido como amigos ou conhecidos pelos ciganos, compõe-se de pessoas que, realizam negócios, concedem serviços e doações, além, de visitar os ciganos em sua comunidade e de recebê-los em suas moradias. A maioria dos ipamerinos, pode igualmente ser incluída entre os moradores, porém, estranhos. Uma grande parte desses moradores sabe da presença de ciganos na cidade tendo como principal contato a mendicância realizada pelos mesmos.
A nível mais detalhado de caracterização, assim como percebe o não cigano dividido em dois tipos de sujeitos de acordo com sua participação na vida do território, o cigano fala de si próprio como sendo uma só categoria de sujeitos dentro de Ipameri.
Os ciganos são os “pobres e necessitados”.
Há ciganos no mundo em “situação muito melhor do que a gente”, mas, como categoria social, eles se identificam com os “pobres da cidade”. Já a nível de Povo Cigano, a comunidade cigana de Ipameri divide sua etnia em dois tipos. Há os “ciganos ricos” em todos os países, que têm uma vida muito boa em ralação aos bens materiais que possuem, e, o outro tipo de cigano, o qual a comunidade em estudo se denomina, é o “cigano pobre” que precisa de ajuda dos demais moradores de Ipameri. Em alguns momentos os ciganos se definem como não-diferentes de qualquer outro ipamerino, embora ao mesmo tempo eles e as pessoas próximas os definem como pobres e marginalizados.
Dada essa autocontradição básica dos ciganos, é compreensível que eles se esforcem para descobrir uma “doutrina” que forneça um sentido consistente à sua situação. Isso significa que os ciganos não só elaboram tal doutrina de vida por conta própria, mas também contam com a participação das pessoas com as quais convivem.
A participação dos não ciganos se dá com a apresentação de elementos presentes na identidade dos ciganos.
Os elementos apresentados aos ciganos, quer explícito ou implicitamente, tendem a cobrir certas questões-padrão. Um modelo desejável de revelação e ocultamento é proposto. Por exemplo, nos primeiros contatos e visitas no território cigano, eles afirmaram que eram iguais aos não ciganos e que a cultura cigana tinha desaparecido, posteriormente passaram a afirmar que eram diferentes dos demais moradores da cidade.
Outras questões-padrão estão relacionadas às fórmulas para se sair de situações delicadas, o apoio que eles deveriam dar a seus semelhantes; a confraternização que deveria ser mantida com os não ciganos e os tipos de preconceitos contra seus semelhantes que eles deveriam ignorar. Os ciganos, indivíduos que têm uma história e uma cultura comum, transmitem sua filiação ao longo de linhas de descendência, numa posição que lhes permite exigir sinais de lealdade de seus membros, e numa posição relativamente desvantajosa na sociedade.
Os ciganos algumas vezes, provavelmente, se vêem funcionando como indivíduos estigmatizados, inseguros sobre a recepção que os espera na interação face-a-face, e profundamente envolvidos nas várias respostas a essa situação. Isso ocorre pelo simples fato de que quase todos os ciganos são obrigados a manter relações com vários segmentos sociais da cidade, onde se supõe que prevaleça um tratamento cortês, uniforme, com base limitada apenas à cidadania, mas onde surgem oportunidades para uma preocupação com valorações expressivas hostis baseadas num ideal dos ciganos.
Quando o cigano fala dos demais moradores, fala de um “rico”, de “patrão”, de “fazendeiro”, de “vereador”. O não cigano do mesmo nível é um comerciante, um vizinho, um visitante. Ao falar dos demais moradores de Ipameri, em termos gerais, o cigano não encontra categorias definidas para explicá-lo como um grupo étnico. De forma semelhante a que muitos não ciganos se explicam, também os ciganos os consideram como “o povo que estava aí”, “os moradores da cidade”. No discurso do cigano, os demais moradores aparecem, sobretudo como “o amigo”. Nóis tem amizade já com o pessoal daqui, da cidade. Aqui é um lugar bão, um pessoal bão e amigo. (Aparecida, 57anos - 13/04/2002). Há uma diferença essencial entre a maneira como o cigano fala dos demais moradores, e como o não cigano fala do cigano em Ipameri. No discurso do não cigano, o cigano aparece com duas variações básicas de uma mesma identidade étnica: o “cigano generalizado” e o “cigano de Ipameri”. O “cigano generalizado”, assim como o “cigano de Ipameri”, estabelece uma separação, para os não ciganos, no mundo individual dos ciganos. A divisão ocorre, em primeiro lugar, entre os que conhecem e os que não conhecem.
Os que os conhecem são aqueles que têm uma identidade do cigano de Ipameri; eles só precisam vê-los ou ouvir sobre eles para trazer à cena essa informação. Os que não conhecem são aqueles para quem os ciganos de Ipameri são estranhos, pessoas cuja identidade de “cigano de Ipameri” não foi feita. Assim, a representação dos ciganos, no que se refere à sua identidade de “cigano generalizado” e “cigano de Ipameri”, varia muito segundo o conhecimento ou desconhecimento que as pessoas têm deles. Para falar dos ciganos de Ipameri, grande parte dos demais moradores da cidade (54%) que já ouviram falar, mas não conhecem o território, costumam estabelecer comparações com os ciganos que ouviram falar, tomados como paradigma, criando assim o “cigano generalizado”.
Os ciganos têm conhecimento desse fato. As pessoas que os conhecem, por sua vez podem saber ou não que os ciganos conhecem ou ignoram tal fato. Por outro lado, embora acreditem que os outros não os conhecem, eles nunca têm absoluta certeza disso.
 Quando um cigano está entre pessoas para as quais ele é um estranho e só é reconhecido por uma ou mais características culturais em termos de sua identidade aparente e imediata, uma grande possibilidade com a qual eles se defrontam é de que essas pessoas comecem ou não a elaborar uma identificação para eles, pelo menos a recordação de tê-los visto em certo contexto conduzindo-se de uma determinada forma ou já ter lido e ouvido falar sobre ciganos. Por isso a interpretação dos demais moradores depende muito do contato com os ciganos do território. O tratamento que é dispensado aos ciganos tendo como base a sua identidade generalizada freqüentemente é dado pelas pessoas que não mantêm um vínculo social com os mesmos e também do tipo de contato. Ao se considerar só a identidade generalizada, pode ser útil e conveniente os não ciganos considerarem a má reputação ou infâmia que surge num círculo de pessoas que têm um mau conceito dos ciganos sem conhecê-los pessoalmente. Essa infâmia ou má reputação transformase em controle social que pode ser formal e informal. Dentro do círculo de pessoas que conhecem e têm informações sobre os ciganos do território de Ipameri, há um círculo menor daqueles que mantêm com eles um vínculo “social” maior. O reconhecimento social constituí-se no direito e na obrigação de trocar um cumprimento, uma saudação, uma visita ou uma doação. Os não ciganos que possuem esse contato maior sabem “de” e “sobre” os ciganos, e também os conhecem pessoalmente. Conheço o agrupamento cigano em Ipameri, eu e minha família já tivemos e temos vários contatos com eles, através de venda ou compra de cavalos, visitas ao agrupamento, doações feitas aos ciganos, nas festas e cerimônias ciganas. O meu avô contrata alguns ciganos para prestarem serviços na fazenda. É muito bom o relacionamento entre ciganos e não ciganos em Ipameri, eles são educados uns com os outros. Eles são humildes, minha família tem uma grande confiança neles, ao contrário que o povo fala que eles roubam. (R.G.O. - estudante - abr/2003).
O representante da Igreja Católica Brasileira de Goiandira(GO), padre Neto que realiza casamentos e batismos no território cigano fala sobre o relacionamento entre ciganos e a Igreja: Os ciganos sempre me procuram, já tem quase dois anos que os conheço. A gente respeita o diferente do outro (...) não devemos impor. É uma troca, você dá e recebe.
No passado era diferente, a concepção da Igreja era impor, hoje é diferente, nós temos que levar e receber, eu estou aqui, eu estou aprendendo também com eles. No entanto, se eu chegar em outro lugar, e se falar sobre os ciganos, eu posso falar, porque eu conheço, eu já estive com eles, eu só posso falar daquilo que eu sei, normalmente as pessoas falam sem conhecer (...).
Todo ser humano deve ser respeitado, a cultura diferente é uma troca de experiência, onde eu dou e recebo. (mai/2002). Parece que a imagem pública dos ciganos de Ipameri, ou seja, as suas imagens disponíveis para aqueles que não os conhecem pessoalmente, é, necessariamente, um tanto diversa da imagem que eles projetam através do trato direto com aqueles que os conhecem pessoalmente. A imagem pública dos ciganos é constituída a partir de uma seleção de fatos sobre eles que podem ser verdadeiros ou não e que se expandiu até adquirir uma aparência dramática e digna de atenção tendo como conseqüência o aparecimento de vários estigmas e ainda conforme Goffman (1988) a manipulação da identidade pessoal. Viu-se que a identidade generalizada dos ciganos divide o seu mundo de pessoas e espaços, o que faz também a sua identidade de cigano de Ipameri, embora de maneira diferente. Esses quadros de referências foram possíveis com a intensificação dos contatos com os ciganos e a pesquisa realizada com os demais moradores, identificando as diversas situações sociais que os ciganos participam. Assim, será tentativa a seguir, mostrar que o cigano generalizado e o cigano de Ipameri são partes, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao cigano.

O Cigano e o Outro; O Outro e o Cigano 

Em 1782 aconteceu no condado de Hont (então parte da Hungria, hoje parte da Eslováquia), segundo Grellmenn apud Fonseca (1996) torturas de ciganos acusados de canibalistas. Um dos casos envolvia mais de 150 ciganos, 41 dos quais foram torturados até arrancarem deles confissões de canibalismo. Quinze homens foram enforcados, seis tiveram os ossos partidos na roda, dois foram esquartejados e dezoito mulheres decapitadas, antes mesmo que a investigação ordenada pelo monarca Habsburgo José II revelasse que todas as pretensas vítimas dos ciganos estavam vivas.
A jornalista Izabel Fonseca (1996) relata que em abril de 1991, em Bolintin Deal, uma cidade cerca de setenta quilômetros de Bucareste, um estudante de música de 23 anos foi morto por um cigano, e como retaliação, dezoito casas ciganas foram inteiramente queimadas numa única noite. Três anos depois, só o assassino, o cigano, mas nenhum dos incendiários havia sido processado.
O prefeito dessa pequena cidade havia sido transformado em herói local: era um eloqüente quanto ao princípio de predomínio da maioria, “a vontade do povo” e seu dever de protegê-lo e proteger o “direito de autodeterminação” dos romenos (etnicamente puros), o que significava seu direito de decidir qual seria a composição étnica de sua cidade. Quando a autora visitou a cidade em 1994, os moradores não demonstravam sinal de arrependimento. Ao contrário, tinham orgulho dessa atitude ter sido noticiada no jornal da noite, e melhor ainda, que a reportagem tivesse inspirado eventos semelhantes por todo o país.
No Brasil um alvará de 1760 informa às autoridades de nosso país: "Eu El Rei faço saber aos que este Alvará de Lei virem que sendo me presente que os ciganos que deste Reino tem sido degredados para o Estado do Brasil vivem tanto à disposição de sua vontade que usando dos seus prejudiciais costumes com total infração das minhas Leis, causam intolerável incômodo aos moradores, cometendo continuados furtos de cavalos, e escravos, e fazendo-se formidáveis por andarem sempre incorporados e carregados de armas de fogo pelas estradas, onde com declarada violência praticam mais a seu salvo os seus perniciosos procedimentos; considerando que assim, para sossego público, como para correção de gente tão inútil e mal educada se faz preciso obrigá-los pelos termos mais fortes e eficazes a tomar vida civil (...) que vivam em bairros separados, nem todos juntos, e lhes não seja permitido trazerem armas, não só as que pelas minhas leis são proibidas, que de nenhuma maneira se lhes consentirão, nem ainda nas viagens, mas também aqueles que lhes poderão servir de adorno. E que as mulheres vivam recolhidas e se ocupem naqueles mesmos exercícios de que usam as do país. E hei por bem que pela mais leve transgressão do que neste alvará ordeno, o que for compreendido, nela seja degredado por toda a vida para a ilha de São Thomé, ou do Príncipe, sem mais ordem e figura de juízo (....).”(China, 1936: 399 apud Teixeira, 1998) Três momentos. Em 1760, 1782 e 1991. Mais do que isto, três atitudes fundamentais diante de um mesmo problema: o problema do OUTRO. São relatos que mostram a desqualificação do Outro em referência ao valor reafirmado do próprio EU. O Outro: um problema recorrente para os ciganos nas várias etapas de sua história, ao longo de sua experiência, individual e coletiva. *Roque de Barros Laraia (1999) procurou demonstrar como a cultura influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade.
Para ele a nossa herança cultural, desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos “padrões” aceitos pela maioria da comunidade. Por isto, discriminamos o comportamento de pessoas “diferentes” de nós.
Tal fato representa um tipo de comportamento padronizado por um sistema cultural. Para Laraia, o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são produtos de uma herança cultural.
Assim, pode-se entender o fato de que indivíduos de culturas diferentes como os ciganos são identificados por suas características culturais. Constantemente observa-se uma grande dicotomia entre “nós” e os “outros” e que comportamentos etnocêntricos resultam em apreciações negativas, dos padrões culturais de povos diferentes. A aproximação e o convívio no Território Cigano em Ipameri, as observações, os questionários e as entrevistas em vários segmentos sociais da cidade, bem como o estudo bibliográfico, mostraram que as práticas racistas constroem-se e são reiteradamente repetidas a partir de preconceitos que grupos étnicos tidos como superiores têm acerca da história e do modo de vida daqueles considerados inferiores.
Para a maioria dos não ciganos entrevistados em Ipameri, o relacionamento entre eles e os ciganos na cidade é regular (54%). Como 21% considera o relacionamento ruim, vê-se que apenas 25% considera as relações entre ciganos e demais moradores em Ipameri como boa e muito boa. Esse relacionamento regular é justificado por 44% dos entrevistados devido ao preconceito existente por parte dos não ciganos. Segundo Raffestin (1993) não há superioridade absoluta e, menos ainda, inferioridade absoluta.
Só há superioridade e inferioridade relativas. A passagem do relativo ao absoluto se inscreve num mecanismo de dominação para fazer triunfar um poder. Assim, as diferenças étnicas, quando não estão mais latentes na consciência servem para alimentar um preconceito útil a afirmação de um poder. Ainda para Raffestin, as diferenças étnicas constituem um fator político, que pode ser virtual ou pode ser concreto.
E toda tentativa de reduzir as diferenças, entre indivíduos ou sociedades, ou de impor um modelo único é um genocídio que pode tomar múltiplas formas. Esse genocídio que, de um ponto de vista geral, enfraquece a autonomia da espécie no seu conjunto, cria um paradoxo de um certo “mundialismo”. Discutindo as abordagens sobre a integração ou afastamento social dos ciganos através de suas ações sociais e políticas, Martinez (1989) critica certos autores “tradicionais” que criaram uma “identidade” cigana apresentada como um espelho a todos os ciganos, dizendo que todos eles formariam um povo único, uma raça com uma cultura e uma linguagem comum. O que comumente se estuda é o cigano enquanto povo único com uma cultura generalizada. Um povo visto com receio e desconfiança pelos não ciganos, que muitas vezes os atacam, praticando injustiças, emprestando-lhe má fama e a reputação de ladrões. Assim, reconhecer e discutir a diversidade cigana também pode ser um importante passo para que eles se percebam em um mundo complexo em que é necessário questionar o valor da hegemonia de um padrão cultural único. A idéia de um povo cigano único oculta que os mesmos, apesar de compartilharem certas características étnicas são portadores de culturas diversas e podem ou não experimentar relações conflituosas com os não ciganos.
Desse modo, acredita-se que os ciganos devem ser apresentados não apenas enquanto importantes agentes sociais, como também enquanto aqueles que foram capazes de resistir/aceitar/sobreviver, no interior do campo de relações a que estiveram expostos, tendo cada cigano sua peculiaridade, sua particularidade.

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