quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Algumas perguntas e respostas sobre a cultura cigana

Algumas perguntas e respostas sobre a cultura cigana

Respostas da escritora Cristina da Costa Pereira a perguntas feitas na IIIª Fiesta Gitana que não foram respondidas no dia 19 de outubro de 2014 por questão de tempo:

1) Por que os ciganos se casam entre eles?

Pelo fato de não terem um território delimitado como pátria só deles, o casamento entre ciganos é, além da língua cigana, o romani, um dos pontos altos da coesão da etnia. Mas é bom destacar que os calons sedentários casam-se preferencialmente entre eles, bem como também ocorre com os calons nômades. Quanto aos ciganos do grupo rom (e os vários subgrupos – kalderash, macwaia, xoraxané, lovara etc.) casam-se, cada qual, preferencialmente, dentro do mesmo subgrupo, pois o convívio do casal, para falar em termos práticos, fica mais facilitado.
“Além disso, há o dote e, com casamentos entre ciganos do mesmo grupo e subgrupo, estes se fortaleceriam. A estabilidade  do casamento, então, poderia ser mais garantida, porque, em caso de desavença conjugal, só uma kumpania estaria envolvida. Como se vê, a ideia de perpetuar o clã está sempre presente entre os ciganos.” (PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro, Rocco, 2009).
Mas isto não é regra geral, pois no livro supracitado, o cigano kalderash Ivan Nicrites conta uma bela história de amor entre um rom kalderash seminômade e uma calin nômade, seus pais, e as dificuldades que isso acarretou por eles serem de grupos diferentes.
“Quanto à possibilidade de haver casamento entre um cigano e uma gadji, as coisas se complicam, pois a família do rapaz, que sempre dará preferência a casá-lo com uma prima, ou seja, uma cigana, poderá pressionar.” (op. cit.). A mulher cigana que deseja se casar com um não cigano encontrará ainda maior resistência em sua família, pois ela, depois de casada, deverá seguir com o marido e conviver com a família dele e, segundo pensam os ciganos, se afastará das tradições ciganas.
Quando indaguei aos ciganos sobre esta resistência que eles têm ao casamento entre ciganos e não ciganos, respondiam que: “o mundo do romá e o mundo dos gadjé são tão diferentes que há pouca chance de um casamento dar certo nessas circunstâncias (...). Os ciganos casando entre si facilitam a preservação de seus traços culturais na nova família que irá se formar.” (op. cit.)
Ao longo de meus trinta anos de pesquisa e convívio com esta etnia, conheci ciganos de vários subgrupos casados entre si. Além do mais, estamos no século 21 e muitas dessas normas e hábitos vêm se adequando à contemporaneidade.

2) É verdade que o índice de analfabetismo entre ciganos é muito grande?

Falarei somente em termos de Brasil. O índice de analfabetismo é maior entre os calons nômades, pela questão da mobilidade permanente e da discriminação, que os afastam e a seus filhos da escola.
Porém, no Brasil e no mundo, somente de 3 a 4% dos ciganos (dados fornecidos pela Unesco e pelas organizações ciganas internacionais) são nômades, hoje em dia. Quanto aos sedentários (do grupo calon e do grupo rom), conheci desde ciganos com doutorado e mestrado, a graduados, com ensino médio, fundamental ou, mais raramente, analfabetos. Eles exerciam as mais diversas profissões (músicos, dançarinos, médicos, assistentes sociais, promotores, advogados, cartomantes, circenses, professores, oficiais de justiça, delegados, taxistas) como qualquer não cigano. Quanto mais sedentários são, encontram mais condições de estudar.

3) O que a fez escrever sobre a cultura cigana?

Graduada em letras pela UFRJ e sendo professora de língua portuguesa e literatura, em 1984 veio-me a ideia de escrever sobre os “desconhecidos” ciganos do Brasil. Pensei, primeiramente, em escrever um conto mas, à medida que pesquisava sobre a referida etnia cigana, havendo, então, uma escassa bibliografia sobre o tema e tendo que recorrer à bibliografia estrangeira, resolvi que escrever uma ficção poderia alimentar ainda mais a fantasia e o desconhecimento sobre os ciganos. Achei, então, melhor optar pelo gênero de ensaio e, por meio de viagens a vários estados do Brasil e a alguns países do exterior, encontrando ciganos de subgrupos e condições diversos, recolhendo suas falas, ou seja, dando voz a eles, creio ter ajudado mais na compreensão de sua cultura. Somente alguns ensaios depois, escrevi em 1992 o livro Ainda é tempo de sonhos (Imago), para o público infantil, e em 2011 o livro Qualquer chão leva ao céu – a história do menino e do cigano (Escrita Fina Edições), para o público infantojuvenil, recriando ficcionalmente o universo cigano.
Quando, em 1986, publiquei meu primeiro livro, Povo cigano (edição da autora), obedeci a um desejo íntimo e, ao longo desses anos, em relação a tal tema, percebi que não é só importante dizer: “aqueles são os ciganos, assim são eles”, mas contextualizá-los dentro das complexas relações sociais de dominação (diáspora na Índia, Inquisição, escravidão na Romênia, degredo de Portugal/chegada ao Brasil, perseguição por diversos países europeus, nazismo, advento da União Europeia, sua condição atual no Leste Europeu, na Europa, enfim, todas as situações político-econômicas em que se encontram no século 21, nos mais diversões países, que os afetam).
Às vezes, no que concerne à etnia cigana, é mais fácil considerar o sobrenatural; tocar na realidade é o que dói.

Cristina da Costa Pereira, 23 de outubro de 2014.

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